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O que estamos perdendo - Texto de Fabiane Secches

  • Convidado
  • 25 de jun. de 2018
  • 5 min de leitura

Atualizado: 5 de mai. de 2023


Gas, de Edward Hopper (1940)


Tenho críticas ao livro O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon, que supervaloriza os aspectos médicos da depressão em detrimento dos sociais e psíquicos, mas gostei muito do último texto que ele escreveu para a New Yorker sobre suicídio.

Abaixo, traduzi um trecho que me parece perfeitamente aplicável ao contexto brasileiro, rodeando algo que talvez seja comum à experiência da modernidade em um sentido mais amplo:

“A modernidade é alienante, e tem sido alienante há muito tempo; olhe para as pinturas de Edward Hopper se você pensa que essa miséria pós-industrial surgiu apenas depois da invenção da internet. O isolamento é outro aspecto que aumenta consideravelmente o risco de suicídio. (…)
Existe outro fator que não pode ser subestimado. No cenário nacional [americano], temos observado o acolhimento do preconceito e da intolerância, o que afeta o estado de espírito de todos os cidadãos. Meu psicanalista diz que nunca lhe acontecera antes de cada paciente discutir as políticas nacionais repetidamente, sessão após sessão. Agora, de um lado, temos uma tensão contínua de ansiedade e medo. De outro, a brutalidade. O ódio é deprimente — é obviamente deprimente ser odiado, mas também é deprimente odiar. A erosão da rede de segurança social significa que mais pessoas estão na iminência de um colapso e que existem poucas mensagens autênticas de conforto para oferecer a elas nesses tempos impiedosos. As pessoas estão tomadas pela doença, pelo isolamento e pelo desespero, pelas dificuldades da vida. Nesse momento, a vulnerabilidade de muitas pessoas é exacerbada pela falta de gentileza nos noticiários de cada dia. Nós sentimos tanto as nossas angústias quanto as do mundo. Há uma escassez de empatia, até mesmo de gentileza, na conversa nacional, e esses déficits transformam a neurose ordinária em atos de desespero”.

Nesse caminho, o colunista Frank Bruni também escreveu o seguinte para o New York Times (minha tradução):


“(…) a morte de [Anthony] Bourdain, seguida do suicídio da amada estilista Kate Spade, chama atenção para outra questão: o quanto diz da disparidade entre o que vemos das pessoas externamente e o que elas estão vivenciando internamente; entre suas figuras públicas e suas realidades privadas; entre o verniz visível e a dor invisível. Partes que não vemos: essa era a verdade de Bourdain. Essa era a verdade de Spade. Essa é a verdade de cada um de nós.
As mortes de Bourdain e Spade aconteceram na mesma semana em que novas estatísticas foram divulgadas pelo governo revelando um aumento de mais de 25% de suicídios entre 1999 e 2016, período em que aproximadamente 45 mil americanos tiraram suas próprias vidas. Especialistas se preocupam que essa trajetória reflete um colapso dos laços sociais, da comunidade. Não está claro como ou se Bourdain e Spade se encaixam nesse cenário.”

Sabemos que cada um é afetado pelo mundo externo à sua própria maneira, mas é inegável que também estejamos diante de um fenômeno social, que nos dá notícia de um sofrimento de ordem coletiva. Por isso, parece essencial considerar em que medida o contexto nos torna mais ou menos vulneráveis.


É o que tem sido discutido no Latesfip, o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, que busca olhar para o mundo contemporâneo a partir das confluências entre essas áreas. O livro Patologias do Social (editora Autêntica) reúne textos de quase dez anos de pesquisa e as discussões atuais do Latesfip se concentram nas relações entre subjetividade, psicopatologia e neoliberalismo. A maior parte das atividades é aberta e gratuita.


Em Mal-estar na civilização, Freud escreve sobre os efeitos da repressão da agressividade e sobre a impossibilidade de transformar o discurso que prega amor ao próximo em prática livre de conflitos. É um contraponto importante: a agressividade é uma parte natural da vida em grupo e da vida psíquica. Que ela possa ser expressada em alguma medida é sinal de saúde, não de doença. Um discurso que prega apenas amor ou empatia é insustentável de saída.


Mas quando o discurso político incita o oposto, evocando ódio e intolerância, como em Trump e Bolsonaro, a censura que possibilita a vida em grupo é suspensa e o pior que existe em nós pode vir à tona. Voltamos à barbárie, encontrando o cenário perfeito para a instalação do caos: a violência se torna a linguagem vigente contra o outro e contra nós mesmos. E a desesperança, no lugar de provocar movimento, gera estagnação.


No Brasil, as perspectivas desanimam: os direitos fundamentais, como acesso à saúde e à educação, estão em colapso; a reforma da previdência transforma a aposentaria em ficção; a reforma trabalhista precariza ainda mais o que já era precário; o desemprego atinge taxas recordes. Poderia continuar a lista, mas nós nos angustiaríamos por muito menos.


Abrimos mão da liberdade e de parte de nossa agressividade para viver em grupo, mas se a vida em grupo não nos dá garantias mínimas, qual é o ganho do pacto social, o contrapeso para o nosso mal-estar? Essa pergunta tão justa quanto perigosa faz sombra à reflexão.


O clima de instabilidade, agravado pelo discurso de ódio, também é atravessado pelo discurso produtivista, que valoriza um modo de vida pautado pela competição, pelo pragmatismo e pela quantificação de experiências de sucesso — de acordo com o entendimento de sucesso do status quo.


Na mesma semana em que Bourdain e Spade cometeram suicídio, duas pessoas que, seguindo esses critérios, estariam no topo da pirâmide dos bem-sucedidos, um garoto fez o mesmo na pequena cidade onde nasci em Minas Gerais. Também em São Paulo, sabemos que famílias e escolas estão sendo confrontadas com perdas brutais de adolescentes. Parece urgente repensar as políticas de ensino e construir ambientes que sejam menos voltados para o mercado e mais voltados para as pessoas. Quando disciplinas como filosofia e história são negligenciadas, que lugar estamos garantindo para as singularidades, para o pensamento crítico, para a criatividade?


Em ambientes que valorizam o individualismo e a tal cultura do lacre ao invés da escuta, do diálogo, que lugar existe para o movimento dialético e para a busca de um bem comum que não apague diferenças?


Vivemos em um mundo que, ao contrário, diagnostica e medica comportamentos e sofrimentos apenas porque não estão de acordo com as leis vigentes de saúde e produtividade. Um mundo que transforma diferentes formas de existência em patologias. Há uma tentativa de pasteurização, de automatização da experiência humana. Estimulantes de um lado, calmantes de outro, resta pouco espaço para viver com alguma margem autêntica.


Em uma das reuniões do Latesfip, um dos pesquisadores defendeu que o neoliberalismo, como sistema que em muito ultrapassa a economia e se transformou em modo de vida, conseguiu absorver os próprios colapsos. Por exemplo: quando transformamos nossa frustração em postagem nas redes sociais, também estamos gerando dados para a indústria farmacêutica e o sofrimento que o próprio sistema causou se torna instrumento para que perpetue. É uma lógica macabra, mas que infelizmente passa longe de ser teoria da conspiração. Um sistema regido pela lei da adaptabilidade na pior acepção do termo.


Todo movimento de resistência parece cada vez mais importante. É complicado dizer qualquer coisa otimista agora, mas me lembro de que Bolsonaro ainda não foi eleito, de que ainda podemos construir um futuro com menos sofrimento, com menos intolerância. É difícil acreditar que possa ser um futuro bonito, mas quem sabe podemos tentar um futuro menos terrível.


É o que temos para hoje, e talvez já seja imenso.




Fabiane Secches é psicanalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.

 
 
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